Ensaio Em 1579, algumas províncias situadas no norte de França decidiram unir-se com o objectivo de se protegerem mutuamente na guerra contra a regência dos reis de Espanha. Dois anos mais tarde assinariam o tratado que estaria na origem do que conhecemos hoje em dia como os Países Baixos. A guerra contra os espanhóis foi apenas o primeiro passo para a criação de uma nação. O país, por se encontrar geograficamente abaixo do nível do mar (o que torna as cheias constantes e a agricultura impraticável), teve de ganhar terreno à água pela construção de diques, montanhas artificiais e barragens[1]. Motivados pelas distintas origens das suas gentes, os Países Baixos foram também inovadores no que à tolerância religiosa diz respeito, legislando a favor da liberdade de opção e da multi-religiosidade. Num contexto mais recente, as migrações do século XX levaram um avultado número de indivíduos, principalmente com origem na Turquia, norte de África e Ásia, a emigrar para os Países Baixos. O que à partida poderia ser uma situação estranha para os locais, fez do país pioneiro em integração[2]. 

Existem poucos países no mundo cuja sociedade assente em valores tão particulares. Comparativamente aos restantes países, a população dos Países Baixos tem tido a oportunidade de experienciar situações muito distintas, de ouvir vários lados das histórias e de, consequentemente, formular diversos pontos de vista. Os cidadãos holandeses têm sido educados num ambiente tolerante, aprendendo a aceitar as diferenças e a viver em união. Tudo leva a crer que esta forte base histórica dos Países Baixos, permitiu, já neste século, tornar o país pioneiro em questões das liberdades individuais, como por exemplo, tornando-se na primeira nação a aceitar o casamento entre indivíduos do mesmo sexo, a liberalizar o consumo de drogas leves ou a despenalizar a prostituição, desenvolvendo continuamente uma mentalidade tolerante nos cidadãos. 

Em termos da prática do design, o país tem dos melhores profissionais desta área. A arquitectura e design holandeses são referência em tudo o mundo, pela simplicidade e clareza visual mas também pela criatividade, sinónimo de ideias distintas, arrojadas e quase sempre surpreendentes. Na sua génese está também uma forte componente social, reflectindo a forte ligação existente entre os designers/arquitectos e as suas bases, as pessoas, com vista a um desenvolvimento colectivo. A relação designer/cidadão reveste-se assim de um mutualismo singular, tanto pela liberdade, tolerância e aceitação que o trabalho do designer encontra numa sociedade conscientemente aberta, como pela contribuição que este presta à comunidade através de uma actividade vocacionada para as pessoas.

Acredito que o processo (mais do que o resultado) em que os países se constroem, tem extrema importância na criação de uma consciência colectiva. Afinal, aquilo a que chamamos “país”, é no fundo a junção de todos os cidadãos, das ligações que geram entre si e com as instituições. Os Países Baixos têm sensivelmente o mesmo tamanho e o mesmo número de habitantes de Portugal, no entanto são em muito diferentes. Julgo que alguns dos problemas actuais de Portugal, podem ser explicados com factores históricos, inerentes à construção do país e à forma (ao processo) como a mente dos portugueses se tem vindo a moldar. Ao contrário dos habitantes dos Países Baixos, os portugueses têm tido um acesso limitado a outras formas de estar no mundo. Essa situação poderá dever-se em parte ao isolamento geográfico mas também à relação distante com o seu vizinho único, a Espanha. O isolamento (ideológico) é reforçado na conversão (ou expulsão) aquando dessa confrontação de ideais, como foi o caso dos judeus sefarditas e é ainda reflectido numa necessidade constante de preservar as tradições e feitos passados. Apesar de não estar em causa a existência de um sentido de moderação por parte dos portugueses, tudo leva a crer que a tolerância não faz parte da educação e da cultura dos indivíduos, impedindo Portugal de atingir um ponto de abertura social que motive rápidas e valiosas mudanças para o bem comum.

Julgo por isso que o design e a arquitectura portugueses devem ter um papel a desempenhar nessa difícil tarefa de mudança de consciências. No entanto, nem a maioria dos designers, nem as instituições, nem a população, perceberam ainda a força transformadora que pode ser encontrada no design. Veja-se por exemplo, a forma como a palavra design continua a ser empregue em Portugal, enquanto adjectivo, referindo-se assim à estética ou desenho de determinada obra, em vez de ser referida como um verbo (to design), remetendo para fazer, planear, executar. Continuando a ser apenas a ferramenta final dum processo mais longo, o papel do designer em “narrar a história” estará sempre limitado. Para que esta actividade tenha realmente uma função mais influente na construção dessa história, a participação do designer terá de surgir numa fase inicial do processo. Em Portugal existem uma série de personalidades de renome internacional, da arquitectura ao design, que apesar de em número muito inferior ao dos Países Baixos, poderão liderar e incentivar uma introdução do pensamento de design que venha a ser útil para as pessoas. Essa consciencialização, por si só, não irá criar mais tolerância, no entanto, talvez uma longa exposição a esses métodos venha a criar hábitos diferentes, permitindo cimentar uma relação mutualista entre designer e cidadão que tenha na sua base a diversidade, provocando assim uma abertura social. por Rui Moreira

[1] Betsky, Aaron com Eeuwens, Adam (2008). False Flat: Why Dutch Design is So Good. England: Phaidon.

[2] Este ensaio não leva em conta as medidas anti-multiculturalismo mais recentes dos governos holandeses, pelo facto de não representarem a posição centenária do país neste assunto.

[imagem] Peixe Oranda, palavra japonesa de origem portuguesa que quer dizer Holanda. Fotografia de Kyaw Tun em Unsplash.

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